segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Mecanismo de Solução de Controvérsias da OMC e os países da América Latina: quebrando mitos e rompendo barreiras

Neste artigo, o autor sustenta que os países da América Latina têm logrado contornar alguns dos obstáculos à sua participação no mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Tais esforços estão relacionados tanto a capacitação como a reformas institucionais e têm sido verificados de forma heterogênea na região. O autor conclui que os países latino-americanos não são simples seguidores das tendências no uso do referido mecanismo.

Uma das principais conquistas da Rodada Uruguai foi garantir que as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) fossem de cumprimento obrigatório para os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) e adotadas segundo o princípio do consenso negativo. Na prática, passou-se de um conjunto de decisões arbitrais ad hoc no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, sigla em inglês) para um espaço normativo funcional, dotado de práticas e uma jurisprudência coerentes, e que apresenta um volume de decisões sem paralelo no âmbito do direito internacional. O mecanismo de solução de controvérsias (MSC) é especialmente importante para os países em desenvolvimento (PEDs) já que, em um sistema de normas, são os fundamentos jurídicos que determinam o desfecho de uma disputa, e não a vontade dos países com maior poder econômico.
A Tabela 1, baseada nas estatísticas da OMC até setembro de 2011, oferece um panorama da participação dos países da América Latina no MSC, inclusive como terceira Parte em alguma disputa. Conforme revelam os dados, todos os países da região atuaram de alguma manera no MSC. Bolívia, Cuba e Paraguai, porém, participaram apenas como terceira Parte.
É verdade que os números absolutos não dizem muito sobre a participação dos membros, quando considerada a sua parcela relativa no comércio mundial. Espera-se que, quanto maior o intercâmbio com outros países, maior a probabilidade de um membro encontrar obstáculos às exportações que devem ser removidas mediante o uso do OSC. A Tabela 2 calcula o índice de utilização do MSC ponderado sobre a base da participação nas exportações mundiais de bens e serviços. Segundo a fórmula utilizada, o ponto de equilíbrio é 1, de modo que todo resultado superior a 1 indica a sobrerrepresentação do país no MSC dado o seu nivel de comércio. Índices inferiores a 1, por outro lado, correspondem a países que utilizam o órgão menos do que a sua participação nas exportações levaria a pensar.


Os resultados levam a conclusões interessantes. Em primeiro lugar, constata-se que Guatemala e Honduras apresentam uma participação no MSC bastante superior à participação nas exportações totais dos membros da OMC. Entre os países da região, a Venezuela é o único que utiliza o MSC menos do que o seu nível de exportações sugeriria. Outro caso interessante é o México, principal exportador da América Latina, que, embora tenha um total de 21 solicitações de consulta, possui um baixo índice de participação no MSC. A principal conclusão geral é que os países da América Latina, seja como demandantes ou demandados, possuem um nível de participação no MSC superior ao esperado dado o peso relativo da região no comércio mundial. Dessa maneira, é pertinente pensar que os membros da OMC na América Latina foram capazes, em grande medida, de contornar os obstáculos à participação dos PEDs no MSC. Tais desafios são analisados a seguir.
 
Obstáculos à participação dos PEDs no MSC
A seguir, busca-se analisar como os países latino-americanos têm lidado com os obstáculos que restringem a capacidade de os PEDs recorrerem ao MSC. O artigo escrito por Hunter Nottage, intitulado “Developing Countries in the WTO Dispute Settlement System”[1] é particularmente útil para identificar quais são os obstáculos reais ou percebidos. São seis os obstáculos identificados por Nottage, os quais são discutidos a seguir.
i) Falta de expertise ou de capacidade para litigar na OMC
A falta de capacidade para litigar na OMC por parte dos PEDs tem sido aliviada pelo Centro de Assessoria Jurídica em Assuntos da OMC (ACWL, sigla em inglês). O ACWL foi criado em 2001 para dar apoio jurídico aos PEDs em suas atividades na OMC, especialmente na solução de controvérsias. Além de prestar serviços a taxas bastante inferiores àquelas de escritórios privados, o Centro estabelece um limite para os custos de assessoria, definido de acordo com a categoria do membro[2]. Para utilizar tais serviços, os PEDs devem ser membros do ACWL, status adquirido mediante o pagamento de uma contribuição única, calculada segundo a participação do país no comércio internacional.
Atualmente, 14 países latino-americanos são membros do ACWL: Colômbia, Uruguai e Venezuela na categoria B; e Bolívia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru e República Dominicana na categoria C. A América Latina é a região com mais representantes no Centro – o que talvez explique a alta taxa de participação do MSC.

ii) Identificação e comunicação de barreiras comerciais ao governo
O principal problema consiste em informar o governo sobre a medida que constitui um obstáculo comercial, de modo a permitir sua avaliação para determinar se existe ou não violação dos acordos da OMC. Os PDs possuem mecanismos formais para que os exportadores comuniquem as autoridades caso se deparem com uma medida imposta por outro país que restrinja o acesso ao mercado. Os países latino-americanos não apresentam mecanismos semelhantes; a identificação e a comunicação de barreiras comerciais ao governo persistem como problemas reais para a maior parte de países da região.
Contudo, existem mecanismos institucionais informais, como no caso do Brasil, onde se observa a interação da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), o Conselho Consultivo do Setor Privado (CONEX) e a Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) do Ministério das Relações Exteriores (MRE). A experiência do Brasil indica a importância de canais de comunicação entre o setor privado e os governos para potencializar a participação plena no sistema multilateral de comércio – em especial no MSC.

iii) Temor a pressões políticas ou econômicas por parte dos membros questionados
O medo de represálias, ao que parece, foi superado há algum tempo nos países da região. Desde as primeiras tentativas, os países latino-americanos mostraram-se pouco reticentes em desafiar os PDs. Uma vez mais merece menção a atuação do Brasil que, além de utilizar o MSC para a defesa de suas exportações, utiliza o mecanismo com o objetivo de fortalecer suas posições nas negociações.
Exemplo disso é o caso do algodão, em que os subsídios agrícolas dos Estados Unidos foram questionados. Ao iniciar a disputa, o Brasil não buscava apenas defender suas vendas de algodão ou de soja no mercado internacional; seu principal objetivo era questionar os subsídios agrícolas estadunidenses, um ponto central das negociações da Rodada Doha. Em sua tentativa de prevalecer no caso do algodão, o Brasil aumentou de forma significativa o seu peso político na OMC, a ponto de, atualmente, ser um dos principais atores na Organização, ao lado de Estados Unidos, União Europeia (UE), China e Índia.

iv) Duração dos procedimentos
A percepção de que a duração dos procedimentos do MSC constitui um obstáculo depende do ponto de vista adotado: para o demandante, estes são muito longos, ao passo que, para o demandado, são demasiado curtos para a preparação de uma boa defesa. De qualquer maneira, os países da América Latina encontraram soluções criativas para a questão.
A Colômbia, por exemplo, recorreu aos bons ofícios do diretor-geral no caso da banana. Duas foram as razões alegadas: para os colombianos, este procedimento poderia solucionar mais rapidamente um assunto que já vinha sendo discutido há tempos na OMC, além de permitir a obtenção de uma recomendação concreta para a solução do caso. Todo o processo de bons ofícios durou pouco mais de dois anos, ou seja, um período similar ao de um painel (considerada também a apelação). Uma solução negociada para a controvérsia, entretanto, evitou todo o processo de cumprimento das recomendações do OSC, o que a tornou muito mais eficiente.

v) Os compromissos que regulam parte do comércio dos PEDs não são exigíveis na OMC
Parte importante do comércio entre PEDs e PDs é realizada por meio de preferências que não podem ser discutidas no MSC da OMC. Com isso, o uso do mecanismo por parte dos PEDs sofre uma importante limitação. Ademais, boa parte do comércio intrarregional na América Latina e de forma crescente com os Estados Unidos, é feito por meio de acordos regionais que possuem seus próprios mecanismos de solução de controvérsias. O MSC só garante o cumprimento das obrigações adquiridas no marco da OMC, ou seja, contidas nos acordos do sistema multilateral de comércio e nas listas de concessões de bens e serviços de cada membro. Estejam cobertas por derrogações ou pela cláusula de habilitação na OMC, as preferências unilaterais não são compromissos exigíveis no MSC.
Essa situação explicaria a razão de o México possuir uma baixa participação relativa no mecanismo da OMC, tendo em vista que grande parte de suas exportações – cerca de 78% em 2011 – têm os Estados Unidos como destino. Dado que o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, sigla em inglês) possui um mecanismo de solução de controvérsias próprio, é possível que a maioria das disputas entre mexicanos e os Estados Unidos não cheguem ao MSC da OMC[3].

vi) Incapacidade de implementar as recomendações do OSC
Um dos obstáculos que tem recebido maior atenção nos círculos acadêmicos e nas discussões na OMC é a suposta incapacidade dos PEDs de garantir o cumprimento das recomendações do OSC, utilizando a retaliação. Vale a pena lembrar, porém, que o histórico de cumprimento das recomendações do OSC é muito bom. Desde o estabelecimento da OMC, houve somente 19 decisões arbitrais – referentes a 9 medidas comerciais distintas – baseadas no artigo 22.6 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC) estabelecendo o nível de suspensão de concessões, ao passo que 17 autorizações do OSC permitiram a adoção de medidas retaliatórias. Os países da região, inclusive o Caribe anglófono, envolveram-se em 6 dos 9 casos – se os contabilizamos por medida violatória – em que a retaliação foi autorizada.
Destes casos, três merecem ser vistos detalhadamente. O primeiro membro latino-americano que solicitou autorização para a aplicação de medidas retaliatórias foi o Equador, em sua disputa com a UE pela banana. Antigua e Barbuda viu-se na mesma situação no caso das apostas pela Internet, contra os Estados Unidos. Finalmente, o Brasil também solicitou a aplicação de medidas retaliatórias no caso do algodão contra os Estados Unidos. Os três casos possuem algo em comum: constituem medidas de alta sensibilidade política, por envolverem interesses de atores influentes nos países envolvidos. Dessa maneira, a falta de cumprimento das recomendações do OSC não decorre tanto do perfil dos participantes da disputa, mas sim de seu resultado. Em todos os exemplos apresentados, a efetividade da retaliação não influiu na decisão do membro derrotado de cumprir ou não com as recomendações.
Em resumo, a impossibilidade de garantir o cumprimento das recomendações da OMC é um impedimento que não tem sido observada na prática, devido ao alto nível de cumprimento até o momento das decisões do MSC. No entanto, as razões teóricas para tais impedimentos são sólidas, e existe uma distância pequena entre a teoria e a prática nesse caso. Por isso, vigilância constante é necessária, a fim de enfraquecer o peso teórico dos argumentos que justificariam tal impossibilidade[4].

Considerações finais
Conforme apontado pela análise estatística, a participação dos países latino-americanos no MSC tem sido não apenas superior àquela apresentada pelos demais PEDs, como também mais significativa que o seu peso relativo no comércio internacional. Os países da região foram capazes de encontrar formas de superar obstáculos e impedimentos que, em geral, prejudicam a participação dos PEDs no MSC. O Brasil, em especial, tem utilizado o mecanismo de modo a fortalecer as suas preferências nas negociações. Tal estratégia tem exigido um esforço importante em matéria de capacitação e reforma institucional. Para maximizar os benefícios da participação no MSC, é necessário desenvolver mecanismos internos que permitam ao setor privado comunicar ao governo as barreiras comerciais encontradas para que seja avaliada a conveniência de uma disputa na OMC.
Ademais, é preciso atentar para os fluxos de exportação em direção aos parceiros comerciais do mundo desenvolvido, especialmente quando há preferências envolvidas. O ideal seria que as tarifas consolidadas segundo o princípio da Nação Mais Favorecida (NMF) se aproximassem cada vez mais das preferências, eliminando-as – o que traria maior previsibilidade ao intercâmbio comercial com os PDs. Por outro lado, tal iniciativa nivelaria a competitividade dos PEDs com países anteriormente excluídos das preferências.
A principal conclusão do presente artigo é que os países latino-americanos não são simples seguidores das tendências no uso do MSC. Pelo contrário, encontram soluções inovadoras e formulam argumentos criativos, respeitando os parâmetros estabelecidos pelas normas da OMC. Com isso, a América Latina utiliza plenamente as ferramentas oferecidas pelo sistema multilateral de comércio para defender seus mercados de exportação, fundamentais para a promoção do crescimento econômico.

Raúl Torres Troconis -Conselheiro na Divisão de Desenvolvimento da Secretaria da OMC. Mestre pela Universidade de Georgetown.
[1] O artigo em questão pode ser acessado na seguinte página: http://www.globaleconomicgovernance.org/wp-content/uploads/nottage-working-paper-final1.pdf.
[2] Na prática, o total cobrado por um serviço se limita a 276.696 francos suíços para membros da categoria A, 207.522 francos suíços para a categoria B e 138.348 para a categoria C.
[3] Ainda assim, 10 das 21 consultas solicitadas pelo México segundo o MSC da OMC foram contra os Estados Unidos.
[4] Hunter Nottage conclui de forma semelhante a sua análise do tema.


Fonte: ICTSD

Por que a Rússia apoia a Síria?

A escalada de violência na Síria, agora classificada pela ONU como estado de guerra civil, deixa cada vez mais aparente a posição quase isolada de Moscou das grandes potências ocidentais. Por que então o Kremlin segue apoiando o governo do presidente Bashar Assad ? O comentarista político Konstantin von Eggert, da rádio Kommersant, analisa as razões do governo Vladimir Putin de seguir dando respaldo a Damasco: 

"Analistas tendem a explicar a posição inflexível de Moscou para com a Síria citando o comércio de armas (o regime de Bashar Assad teria encomendado equipamentos militares russos avaliados em cerca de US$ 3,5 bilhões) e a base naval militar russa no porto sírio de Tartus. Mas apenas isso não justifica a aparente indiferença aos efeitos negativos que sua defesa do governo Assad tem nas relações com os EUA, a União Europeia e a maioria dos países árabes.

A explicação tem muito a ver com as políticas domésticas russas e as obsessões de sua classe política. Ao apoiar Damasco, o Kremlin diz ao mundo que nem a ONU ou qualquer outro grupo de países tem o direito de dizer quem pode ou não governar um Estado soberano. Olhando sob este ângulo, a posição russa ganha novo significado.
Desde a queda de Slobodan Milosevic em 2000, e especialmente depois da "Revolução Laranja" de 2004 na Ucrânia, a liderança russa é obcecada com a idéia de que os EUA e a União Europeia arquitetam a queda dos governos que, por algum motivo, julgam inconvenientes. Putin e sua equipe parecem convencidos de que algo assim pode acontecer na Rússia.
Defesa própria
A classe política russa nunca aceitou conceitos como "responsabilidade de proteger" que limitam a capacidade de governos reprimirem seu próprio povo. Soberania, para a liderança russa, significa uma licença sem limites para os governos fazerem o que quiserem dentro de suas fronteiras nacionais.
Desde a operação da Otan contra a antiga Iugoslávia em 1999, Moscou desconfia profundamente da retórica humanitária ocidental, considerando-a nada mais do que camuflagem para a troca de regimes. A crise líbia no ano passado reforçou estes temores. Muitos dirigentes russos, incluindo Putin, consideram a abstenção do então presidente Medvedev na votação do Conselho de Segurança que autorizou uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia um desastre.
Na visão de Putin, ela abriu caminho para intervenção externa em favor de um dos lados e a remoção de Kadafi no que era, essencialmente, uma guerra civil. Parece que o "novo velho" presidente russo está decidido a não deixar isso acontecer de novo. Assim, a posição de Moscou se torna não apenas uma forma de defesa de interesses particulares, mas uma declaração política.
Nova Líbia?
Moscou sentiria ser possível a formação de uma nova coalizão para a remoção militar de Assad, ao estilo do que aconteceu na Líbia?
Acredito que sim. Mas como ouvi recentemente de um alto diplomata russo: "Não podemos impedi-los (aliados ocidentais e ricos países do Golfo Pérsico) de tentar. Mas nunca daríamos a eles a autorização de uma resolução da ONU".
O que se lê nas entrelinhas é que a Rússia também dificultará a tarefa o máximo possível. Moscou diz ter influência especial sobre o regime em Damasco mas parece que, em vez de aconselhar Assad a modificar suas atitudes, os emissários russos diziam, há até pouco, "deixe-nos ajudar vocês. Use algumas medidas cosméticas criativas e nós poderemos te defender melhor".
Esta atitude parece ter deixado de funcionar quando fracassou a missão de Kofi Annan e a legitimidade do regime sírio deu impressão de implodir rapidamente.
Barganha
O Kremlin agora cogita a possibilidade de saída de Assad, mas a considera improvável. O governo russo acredita que com sua ajuda, mais a de China e Irã, o governo sírio pode derrotar seus oponentes.
No entanto, se Assad for forçado a sair, a Rússia vai se esforçar para criar um ambiente de negociações que envolva atores externos e possibilite a Moscou algum poder de barganha sobre seus interesses militares e comerciais na Síria. Mas a meta principal para Moscou seguirá sendo uma solução que permita uma saída honrosa para Assad que, pelo menos não no exterior, pareça ter sido uma derrubada clássica de regime.
À boca miúda, dirigentes russos costumam citar o caso iemenita, no qual o veterano presidente Ali Abdullah Saleh deixou o poder, ganhando imunidade e seu vice-presidente foi instalado como chefe de Estado. Mas dada a magnitude do drama sírio, tal cenário parece cada vez mais improvável, coisa que deixaria Moscou atrelada ao regime de Assad até seu amargo fim".

Fonte: BBC

 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Bastidores de cúpula indicam pressa do Brasil em ampliar Mercosul

A forma como a entrada da Venezuela foi consolidada na última reunião cúpula do Mercosul, no final da semana passada, revela a pressa do Brasil em ampliar o bloco.
Essa é a opinião de analistas ouvidos pela BBC Brasil, que acreditam que o Brasil, em particular, estaria preocupado com a crescente influência da China na região, após a criação da Aliança do Pacífico, bloco que serve de "contrapeso" ao Mercosul e teria maior aproximação com a Ásia.
Segundo a imprensa dos países do bloco, o Brasil teria pressionado pela integração imediata da Venezuela ao Mercosul - e essa integração teria sido decidida em uma reunião a portas fechadas entre os presidentes do Brasil, Argentina e Uruguai durante a cúpula, na cidade argentina de Mendoza.
Há notícias de que a pressão exercida pela presidente Dilma Rousseff neste sentido sobre o Uruguai teria causado um mal estar diplomático.
Além da integração da Venezuela, a Cúpula também suspendeu o Paraguai, em consequência da derrubada do presidente Fernando Lugo. O Paraguai era o único país do bloco que não tinha ainda aprovado, no seu Senado, a entrada da Venezuela no Mercosul.

'Golpistas'

Para diplomatas da Bolívia, país associado que participa dos encontros do bloco, "Brasil e Argentina foram decisivos" para incorporar a Venezuela e suspender o Paraguai. "As reuniões tiveram momentos tensos, mas o saldo foi muito positivo para toda a região", disseram.
Na opinião de interlocutores do governo brasileiro, não se podia esperar mais pela entrada da Venezuela no bloco. "Não podíamos ficar reféns dos golpistas do Paraguai. E decidimos dar o troco", afirmou uma fonte brasileira.
Na segunda-feira, o ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Luis Almagro, disse à rádio Espectador e ao canal quatro de televisão, de Montevidéu, que a presidente Dilma pediu, em Mendoza, que os ministros se retirassem para uma reunião entre ela e os colegas da Argentina, Cristina Kirchner, e do Uruguai, José Mujica.
Naquele encontro entre os três presidentes, disse Almagro, foi definida a palavra final sobre a incorporação da Venezuela ainda neste mês. "Essa reunião começou com um chamado de Dilma Rousseff, que disse que tinha que falar pessoalmente com os presidentes sobre um tema político. Nós, ministros das Relações Exteriores, nos retiramos. A postura do Brasil foi decisiva neste assunto (incorporação da Venezuela)", disse Almagro.
Segundo ele, na reunião dos ministros, um dia antes do encontro presidencial, o Uruguai era "contrário à entrada da Venezuela com o Paraguai suspenso".
O Congresso do Uruguai foi o primeiro a aprovar a entrada da Venezuela para o Mercosul, depois a Argentina e, em terceiro, o Brasil. A incorporação definitiva do país ao bloco dependia do Senado paraguaio.
"Eles também não foram tão rápidos em destituir o Lugo? Por que não poderíamos incorporar já a Venezuela? A incorporação foi feita com bases legais", disse um interlocutor brasileiro.
As declarações de Almagro causaram mal estar nos bastidores dos governos argentino e brasileiro. "As presidentes não decidem pelo Uruguai e o presidente uruguaio assinou a decisão de incorporação da Venezuela", afirmou.
A incorporação da Venezuela provocou fortes críticas da oposição uruguaia ao governo de Mujica. O Uruguai tem pouco mais de três milhões de habitantes e setores da política local entendem que com o Paraguai suspenso, o país ficará "ainda mais exprimido" entre as decisões dos dois maiores sócios do bloco – Brasil e Argentina.

Bloco rival

Em seu discurso em Mendoza Dilma disse esperar que outros países sejam membros plenos do Mercosul.
A entrada da Venezuela foi consolidada seis anos após a assinatura do primeiro acordo para essa integração e seis meses antes da reunião semestral do bloco, em dezembro.
"O Mercosul vinha perdendo dinamismo e a integração da Venezuela dará novo e importante fôlego ao bloco. A Venezuela é um país caribenho que tradicionalmente esteve ligado aos Estados Unidos. Precisamos aproveitar a decisão de (Hugo) Chávez de estar na América do Sul para formalizar logo esta integração", disse um interlocutor do governo brasileiro, em Brasília.
"A incorporação da Venezuela também envolve, indiretamente, os países da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da América). E o Mercosul ficará ligado politicamente a este bloco", disse o professor de ciência política da Universidade do Chile, Guillermo Holzmann.
A ampliação do bloco veio pouco menos de um mês depois da formalização, no Chile, da chamada Aliança do Pacífico, com a assinatura de um acordo entre Chile, Peru, Colômbia e México, entre outros.
Segundo analistas e interlocutores dos governos do Mercosul, esse é mais um motivo para o Brasil acelerar a revitalização e ampliação do Mercosul. A Aliança seria um "contrapeso" ao bloco e reúne países com acordos de livre comércio com a China e com Estados Unidos – caso do Chile e do Peru.
A Colômbia tem acordo com os americanos e recentemente disse à China que está interessada no mesmo tipo de entendimento de livre comércio.

Fonte: BBC Brasil

A ilegalidade da incorporação da Venezuela, por Celso Lafer

É indiscutível que tal mudança no Mercosul exige a aprovação paraguaia. Ela carece de boa-fé e ignora a recomendação de Rio Branco de 'Direito e bom senso'


O respeito ao direito internacional é dimensão caracterizadora do Estado democrático de Direito. Ele tem, entre seus valores, a importância da preservação da legalidade como meio de assegurar a convivência coletiva.
No plano internacional, as normas do direito internacional cumprem duas funções importantes para a manutenção da segurança das expectativas, inerente ao princípio de legalidade: indicar e informar aos Estados sobre o padrão aceitável de comportamento e sobre a provável conduta dos atores estatais na vida internacional.
O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, prevê adesões, mas estabelece que sua aprovação "será objeto de decisão unânime dos Estados-partes" (artigo 20).
Não vou discutir os critérios que levaram Argentina, Brasil e Uruguai a considerar, invocando o Protocolo de Ushuaia, que houve ruptura da ordem democrática no Paraguai.
Pondero apenas que foi uma decisão tomada com celeridade semelhante à que caracterizou o impeachment do presidente Lugo e que ela não levou em conta o passo prévio previsto no artigo 4 do referido protocolo: "No caso de ruptura da ordem democrática em um Estado-parte do presente protocolo, os demais Estados-partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado".
Com a suspensão do Paraguai, que ainda não havia aprovado a incorporação da Venezuela ao Mercosul, Argentina, Brasil e Uruguai emitiram declaração sobre a incorporação da Venezuela, a ser finalizada em reunião convocada para 31 de julho no Rio de Janeiro.
O Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto, que deu ao Mercosul sua estrutura institucional, são tratados-quadro de natureza constitucional. Suas normas são superiores às de outras normativas que dela derivam. Inclusive as que levaram aos desdobramentos da suspensão do Paraguai, que não têm a natureza de uma reunião ordinária de condomínio.
O Protocolo de Ouro Preto estabelece: "As decisões de órgãos do Mercosul serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes" (artigo 32), exigência indiscutível para uma decisão que vá alterar a vida do Mercosul, como a incorporação de um novo membro.
Daí, a lógica do artigo 20 do Tratado de Assunção, antes mencionado, que é constitutivo do Mercosul e dele inseparável.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, está em vigor no Brasil. Deve ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém, como estatui o decreto 7030 de 14/12/2009 (artigo 1º).
A convenção estabelece, no artigo 26, que "todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser executado por elas de boa-fé". Estipula, no artigo 31, como regra geral de interpretação, que "um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum atribuível aos termos de tratado em seu contexto e à luz do seu objeto e finalidade".
A exigência da aprovação do Paraguai à incorporação da Venezuela no Mercosul me parece indiscutível à luz dos termos do Tratado de Assunção e de seu objeto e finalidade.
A decisão de incorporar a Venezuela, como foi feita, não atende a obrigações relacionadas à observância de tratados previstas na Convenção de Viena. Carece de boa-fé, seja na acepção subjetiva de uma disposição do espírito de lealdade e honestidade, seja na acepção objetiva de conduta norteada para esta disposição.
Trata-se, em síntese, de uma ilegalidade. Contrapõe-se ao que ensinava Rio Branco: "O nosso Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo na força do Direito e no bom senso". 

Por CELSO LAFER, 70, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores em 1992 (governo Collor) e entre 2001 e 2002 (FHC) 


Fonte: UOL